Não tenho bem certeza, mas tenho uma certa intuição de que é Montesquieu quem faz uma distinção entre a justiça moderna e as justiças primitivas: a noção de tempo é que moderniza a justiça. Leis de Talião e a Lei do olho por olho dente por dente, aberrações primitivas que não asseguravam o tempo necessário para que o réu se defendesse dos crimes que lhe eram imputados, são procedimentos que mancham a história humana, escrevem as páginas mais bárbaras da saga humana por este mundo sem rumo, sem sentido.
Já escrevi sobre isso uma certa vez, e volto à carga hoje novamente. O tempo se transformou numa espécie de moeda de troca das justiças modernas, uma vez que vivemos na sociedade do Código Penal, no reinado absoluto das negociações dos conflitos, por mais insignificantes que sejam, na Justiça, o tempo é o bem mais precioso que o dinheiro pode comprar.
Os sofismas categóricos kantianos são empurrados na cara dos pobres, dos que morrem à míngua sem dinheiro para comprar o tempo nas engrenagens das tramitações dos processos na Justiça: um pedido de aposentadoria de pobre leva intermináveis meses para tramitar; uma liminar de pobre corre a passos de tartaruga, assediado pelas ironias dos juízes de plantão, que arrotam o imperativo kantiano na cara dos infelizes desassistidos: “a ninguém é dado o desconhecimento da lei, então, que espere”. Tenho desprezo por quem pronuncia uma frase como essa, viro as costas, rogo praga, desejando o pior dos infernos a quem repete um clichê como esse na cara de uma pessoa pobre, sem nada.
Ora, os códigos penais da vida têm mais de 300 páginas; a Constituição, mais de 200; os códigos civis, mais de 400; os estatutos de funcionários públicos, mais de 100; os regimentos do inferno... cala-te boca! Nem os advogados, os especialistas em leis, conhecem-nas por completo. Como é possível conhecer a lei? Como alguém tem o acinte de dizer uma coisa dessas?
Dia desses, ouvi de uma professora essa frase. Fiquei com pena da mulher. Na faixa dos setenta anos, repetindo uma coisa dessas, é sinal de que jogou a vida fora, é sinal de que passou a vida toda repetindo clichê kantiano.
Kant inventou o telemarketing, a impessoalidade, a frieza, a criminosa isenção da justiça moderna, que só vale para os pobres – para os ricos, monitorados pelo braço armado de uma esquadrilha de advogados, nem é necessário conhecer as leis: eles pagam para que a tropa de choque advocatícia deles leia as intermináveis páginas dos códigos para eles. Mundo cruel, injusto. Pois, quanto menos se cumprirem as leis, seremos muito mais capazes de amar.
A engrenagem cruel do pedido de aposentadoria de um doente terminal sacaneou tanto que, quando a aposentadoria foi aprovada por essas procuradorias públicas preguiçosas do estado, o doente já havia morrido há oito meses, diz notícia recente de jornal.
Foi necessário passar por todas as instâncias, deixar tudo para o último dia, esticar ao máximo o prazo, mover o tempo ao gosto da burocracia, até que não fosse mais possível, aí, então, concedeu-se o direito, mas a um defunto. Revoltante!
O filósofo dinamarquês Kierkegaard propõe uma hierarquização de um ser humano: no nível mais elementar estaria o homem natural, movido pela cegueira de devorar seu semelhante, sem reconhecer nele a si mesmo; o nível intermediário compreende o lugar onde se encontra o homem que cumpre as leis, assediado pelo direito do outro; o homem extraordinário, nível a que todo ser humano autêntico deve almejar, ama os outros, tem para com os outros as melhores intenções, noutros termos, não sacaneia os outros, compreende, estende a mão, não debocha, aceita, compadece – o homem extraordinário é sublime. Coisa que não passa pela cabeça dessas procuradorias públicas do estado, que espezinham, humilham, sufocam, tornam-se guardiães privadas do direito do estado, como se esses direitos pertencessem a uma classe (aquela da tropa de choque dos advogados) que deles pode usufruir – aos outros, o interminável tempo “previsto nos regimentos”.
Amar um ser humano exige driblar as leis modernas. Saímos de um extremo a outro: saímos das relações de compadrio e promiscuidade do Brasil colonial para a mais completa indiferença e impessoalidade do tempo do telemarketing: Kant acabou vencendo!
Chegamos a um momento da vida humana em que confiar na justiça dessas procuradorias se transformou em algo angustiante, um fardo pesado, uma total desfaçatez. Aqui na Bahia é melhor nem disputar espaço, na sociedade dita civilizada, por uma posição, um emprego público: seremos sempre vítimas do humor desses procuradores e dessas procuradoras. É melhor se conformar e cuidar para sobreviver com um salário mínimo de vendedor ambulante do que estudar, “ser alguém na vida”, e cuidar para morrer cedo, a morrer de desgosto na fila de pedido de aposentadoria do estado, humilhando-se para que o processo tramite, assediado pelo pedido de juntadas intermináveis que essas procuradorias inventam para conceder o benefício da aposentadoria.
Escrevo este artigo a pedido de um amigo, que levou inacreditáveis três anos para que a aposentadoria dele fosse aprovada, humilhado nas idas e vindas, na adulação medonha desses funcionários do INSS, que cacarejam estar cumprindo a lei, a mando da procuradora, que pedia documentos e mais documentos.
O sistema funciona justamente para impedir ao máximo que as pessoas sigam o seu rumo. O INSS funciona para atrasar ao máximo a coisa toda. E isso vale para o sistema judiciário como um todo. Infeliz o dia em que alguém precisar da justiça no Brasil: vai morrer à míngua, à espera de uma assistência que nunca chega.
O tempo moderniza a justiça para fetichizá-la: transformá-la em algo apenas da ordem do desejo, dos sonhos, do onírico, da vontade de apenas tê-la. É como o indivíduo que se masturba pensando no objeto ideal de desejo, alimentando a vontade de um dia fazer sexo com a pessoa que tanto almeja, mas sem nunca alcançá-la. O indivíduo que se masturba, que troca o mundo real pelo objeto de fetiche, tem a ilusão de que um dia vai ter quem quer, em condições ideais, “o bezerro de ouro bíblico”, o dia em que será premiado pelo corpo da revista. A justiça age assim, solapando a vontade da pessoa de ter o que ela deseja, mas quando chega o dia em que é assistido com justiça pela letra da lei, ela já morreu.
A ninguém é dado desconhecer a lei, dizem os incautos, papagaios kantianos. Pois eu digo que, quanto mais a lei se cumpre, mais odiamos o semelhante.
Escrito por BRAULINO SANTANA às 02h06
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